luni, noiembrie 10, 2008

Por fim, os problemas concretos das Indicações Geográficas brasileiras

Terceira Parte


Por Kelly Lissandra Bruch

Uma terceira e última palavra sobre as Indicações Geográficas (IGs) no Brasil. No primeiro artigo, abordou-se sua origem, regulação internacional e legal. No segundo, tratou-se dos problemas advindos da falta de uma correta e completa regularização do registro e do uso das IGs no país. Por derradeiro, pretende-se apontar alguns problemas concretos que a legislação (ou falta de) vem provocando no âmbito das IGs brasileiras já reconhecidas. Claro que se deve evidenciar que o problema legal não opera sozinho: sempre há alguém que se aproveita das falhas da lei em proveito próprio.

Para ilustrar o que se pretende mostrar, utilizar-se-á, no presente artigo, um dos exemplos mais conhecidos de IG brasileira: o Vale dos Vinhedos.

1 – O titular e seus direitos

A primeira questão que se levanta é: Quem é o titular de uma IG? E a segunda: Quais são os direitos que o titular ou usuário de uma IG possui?

A Lei 9.279/1996, nos artigos 176 a 182, não aponta o titular nem explicita quais direitos lhe são conferidos. Aliás, a lei nem fala em direitos – muito menos no titular destes.

Interpretando as disposições aplicadas às demais figuras dos direitos de propriedade industrial, tais como as patentes (artigo 42 da Lei 9.279/1996) e as marcas (artigo 130 da Lei 9.279/1996), e considerando-se as figuras que a lei estabelece como crimes contra as IGs (artigos 192 a 194 da Lei 9.279/1996), se pode concluir, em um primeiro momento, que há um direito de impedir que um terceiro, sem consentimento, utilize a IG em seus produtos ou serviços, incluindo-se nisso o nome e os demais sinais figurativos que a distinguem. Com relação ao titular desse direito, deixemos para buscar uma resposta mais ao final...

2 – O terceiro

Da definição deste direito, surge o problema de saber quem é esse terceiro. E muitas situações concretas se apresentam para buscar definir quem é e quem não é o terceiro que se encontra impedido de utilizar a IG.

Primeira situação: alguém não se encontra instalado na região delimitada pela IG e utiliza o seu nome, embora não produza nem preste serviço nela. Neste caso, ele pode ser considerado o terceiro impedido de utilizar a IG, pois se pode aplicar o tipo penal descrito no artigo 192 da Lei 9.279/1996, posto que se está diante de uma FALSA Indicação Geográfica. Assim sendo, o que se pode fazer? Apresentar uma queixa-crime (já que se trata de uma ação penal privada e não de uma ação a ser movida pelo Ministério Público) ou impetrar uma ação cível de busca e apreensão, combinada com reparação de danos, com base na concorrência desleal. E não há previsão legal de nenhuma ingerência do poder público para tutelar este tipo de situação, que ocorre com freqüência.

Vale ressaltar, com relação a este rótulo, que só pode utilizar como endereço o nome da Indicação de Procedência aquele que tenha o seu endereço realmente com este nome. No caso, embora a “IP Vale dos Vinhedos” abranja parte dos municípios de Bento Gonçalves, Garibaldi e Monte Belo, somente quem se encontra situado no distrito do Vale dos Vinhedos, que faz parte apenas do município de Bento Gonçalves, pode utilizar como endereço o nome “Vale dos Vinhedos”. Sem destaque!

Segunda situação: Mas se esta mesma pessoa utiliza um termo retificativo, como ‘tipo’, ‘espécie’, ‘gênero’, ‘método’, ‘idêntico ao’, Vale dos Vinhedos, ela estaria infringindo a lei? Segundo o artigo 193, ela apenas estaria contrária à lei se não ressalvasse a VERDADEIRA procedência do produto ou serviço. Ou seja, facilmente poderia esta pessoa se utilizar da IG, desde que ressalvada a verdadeira origem! E isso para qualquer produto ou serviço.

Todavia, vale ressaltar que o TRIPs (Acordo sobre os Aspectos de Direito de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio), firmado pelo Brasil no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), determina, em seu artigo 23, que para vinhos e bebidas espirituosas é vedado o uso de termos retificativos. Contudo, o Brasil permite o uso destes termos, tanto na lei 9.279/1996 – Lei de Propriedade Industrial, artigo 193, quanto na lei 7.678/1988 – Lei do Vinho, artigo 49, parágrafo 2º, contrariando o acordo firmado.

Em suma, hoje é possível utilizar no Brasil, em qualquer produto, o nome de uma Indicação Geográfica, seguida de ‘tipo’, por exemplo, se for ressaltada no rótulo a verdadeira origem. Embora, fique claro, isso possa implicar em um ato de concorrência desleal e ser punido como tal.

Terceira situação: Um terceiro utiliza em sua marca comercial o nome da IG. Isso é permitido perante a lei? Segundo o artigo 194, isso é possível, desde que a procedência seja verdadeira. Ou seja, se alguém que produz vinhos no Vale dos Vinhedos tiver registrado uma marca que contenha este nome, poderá o utilizar, posto que a procedência não é falsa. Apenas ocorreria o crime tipificado no artigo 194 se alguém de outro lugar utilizasse em sua marca comercial o nome geográfico.

Para esta situação, há um caso concreto bastante ilustrativo. A cidade de Garibaldi, na Serra Gaúcha, é conhecida por produzir excelentes espumantes. Embora não haja uma IG depositada ou reconhecida no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) até o presente momento, pode-se considerá-la como tal. Todavia, a Cooperativa Vinícola Garibaldi Ltda. possui duas marcas, registradas no INPI, denominadas Garibaldi, sob número 007111410 e 007061897, ambas na classe 33 (para bebidas alcoólicas segundo a classificação de marcas), desde 22/07/1974, nas categorias nominativa (só o nome Garibaldi) e mista (nome + grafia especial). Fora isso, há mais dois registros concedidos (mas para outras classes de produtos) e dois pedidos requeridos com a palavra “Garibaldi”.

Neste caso, localizando-se a cooperativa no município de Garibaldi, ela não está indicando uma falsa procedência. Além disso, a cooperativa possui esta marca desde 1974. Se Garibaldi fosse reconhecido como IG para espumantes, como ficaria o uso desta marca? Seria possível reconhecer esta IG? Estas questões não encontram resposta legal até a presente data.

Situação semelhante é a do nome Salinas, cidade de Minas Gerais conhecida como produtora de cachaça ou aguardente de cana. Há 18 marcas registradas e 7 requeridas para este nome no INPI. Duas das marcas registradas são para a classe de bebidas alcoólicas: uma sob número 816669589, de 23/04/1992, de titularidade de Heleno Medrado Fernandes ME, e outra sob número 820034690, de 03/09/1997, do mesmo titular. Todavia, há todo um movimento para o reconhecimento deste nome como IG para cachaça. O que ocorreria? Neste caso, o terceiro seria o titular da marca? Ou poderia vir a ser proibido de utilizá-la? Como estes, existem inúmeros outros exemplos.

Na União Européia a resposta seria mais clara: como há uma prevalência legal declarada da IG sobre as marcas, ou esta marca seguiria convivendo com a IG ou o titular teria que deixar de usá-la, conforme se pode verificar nos Regulamentos da Comunidade Européia número 510/2006 – para produtos agroalimentares, número 110/2008 – para bebidas espirituosas e número 479/2008 – para vinhos.

3 - ‘Na carona’ de possíveis titulares...

Quarta situação: outra situação que se tem verificado é a possibilidade de um terceiro que se encontra na região delimitada utilizar o nome protegido, mas não fazer parte da associação que requereu o seu reconhecimento. Neste caso, estaria este terceiro violando os direitos de um possível titular? Segundo o artigo 182, o “uso da indicação geográfica é restrito aos produtores e prestadores de serviço estabelecidos no local, exigindo-se, ainda, em relação às denominações de origem, o atendimento de requisitos de qualidade.” Se o uso é restrito a quem se encontra estabelecido no local, pode-se depreender disso que este uso se estende a todo aquele que se encontra estabelecido neste local. Desta forma, o uso, perante a lei, não seria proibido. E isso tem ocorrido com muita freqüência.

O maior problema deste uso, que se dá sem que o usuário se submeta ao controle instituído para a IG, é o risco de tornar este termo genérico e de perder a sua distingüibilidade e mesmo a credibilidade perante o consumidor.

Bem, se este terceiro usa a IG sem autorização da associação e não está infringindo norma legal, poder-se-ia concluir, respondendo à pergunta inicial, que a associação não é a titular do direito, mas sim toda a coletividade que se encontra instalada no local. Ou, ainda, que não há um titular deste direito (já que a lei não o indicou), mas apenas existe um direito de uso da IG para aqueles que se encontram na região? Seria, portanto, um direito público e não um direito privado.

Na União Européia, de maneira geral, efetivamente não há um titular do direito sobre a ou à IG, posto que esta é entendida como um instituto de direito público. Desta forma, o que existe é uma licença / autorização para o uso do nome geográfico se o usuário se submeteu e foi aprovado pelos instrumentos de controle, que são geridos pelo poder público. Quem não segue este rito comete crime de ação penal pública, com pena severa, além de perda dos produtos e uma pesada multa.

Nos Estados Unidos da América a situação é exatamente o oposto: registra-se uma marca, que pode ser coletiva ou de certificação, com o nome geográfico, e o titular desta permite a quem cumprir o regulamento o uso desta nos produtos certificados. É um direito privado sobre uma marca geográfica.

No Brasil têm-se entendido de maneira geral que se trata de um direito privado, mas com um titular não muito claro, cujo gestor é a pessoa jurídica que requereu o reconhecimento. Todavia, poucos instrumentos concretos e eficazes foram postos à disposição destes gestores, que também exercem a função de controladores do sistema. E isso tem criado muitas dificuldades. Como proibir, por exemplo, um membro da Associação a utilizar em seus rótulos o nome ‘Vale dos Vinhedos’, no caso? Não é falsa Indicação de Procedência! Mas é um ‘tiro no próprio pé’...

4 - Outras questões não-reguladas

Além disso, outros problemas se apresentam. Não há, por exemplo, disciplina sobre uma IG registrada poder cair em desuso, seja por falta de uso pela coletividade, seja pelo desrespeito contínuo, seja pela diluição do nome.

De outra forma, embora diga o artigo 180 da Lei 9.279/1996 que quando o nome geográfico se houver tornado de uso comum, designando produto ou serviço, não será considerado Indicação Geográfica. Exemplo: a denominação Cognac foi reconhecida como IG no Brasil pelo INPI. Desta forma, embora Cognac seja uma IG, sua tradução, que é conhaque, pode ser usada como nome de produto segundo dispõe o artigo 8 da Lei de Bebidas, número 8.918/1994. Este nome é genérico ou não? Isso se estende, segundo os artigos 11, 20, 21 e 49, parágrafo 1º da Lei 7.678/1988 – Lei do Vinho, às denominações champanha, champagne, brandy, grappa, graspa e pisco.

Além disso, poderia uma IG ser anulada ou extinta? Não há disposição legal para tanto, do que se presume que, uma vez reconhecida, esta o será ad eternum, independentemente da conduta dos gestores da IG, dos produtores e prestadores de serviços e dos ‘terceiros’. Se os produtores localizados em uma IG registrada deixarem de cumprir o seu caderno regulador; se o órgão gestor não fizer o controle dos produtos ou serviços protegidos e não atuar em face dos seus associados que estão utilizando indevidamente o nome da IG ou de terceiros que estão usando indevidamente o nome da IG; o que aconteceria? Diz-se que o mercado regula estas situações. Mas, enquanto isso, como ficam os consumidores?

Uma IG poderia ser anulada por problemas formais, tais como: o regulamento é incompatível com a realidade da IG; os produtos, no caso de uma Denominação de Origem, não possuem características intrínsecas diferenciadas e atribuídas exclusivamente ao meio geográfico, composto este de fatores naturais e humanos?

Todas estas questões aguardam respostas legislativas, executivas e jurisprudenciais. Se os produtores e prestadores de serviços com interesse em ver reconhecidas suas Indicações Geográficas não atuarem, dificilmente elas virão. E se vierem, podem ser diversas do que é necessário à nossa realidade.

Por fim, novidades com relação às Indicações Geográficas brasileiras! Consultando o site do INPI, foi verificado que novas IGs foram requeridas, como Vale do Submédio São Francisco, para uvas de mesa e manga, bem como algumas foram indeferidas, especialmente Asti, para vinhos, e Roquefort, para queijos. Pelo menos agora claramente os produtores de vinho espumante moscatel poderão continuar a utilizar ‘tipo Asti’ ou ‘método Asti’ ou até a voltar a chamar o produto de ASTI – pelo menos no BRASIL. Quem foi mesmo que disse que utilizar esta palavra era proibido? Segue uma tabela de controle de andamento processual de pedidos de registro de Indicação Geográfica do INPI atualizada!

Andamento processual dos pedidos de registro de Indicação Geográfica no INPI

Situação

Nome geográfico

País

Espécie

Produto ou serviço

Registro

concedido

Região dos Vinhos Verdes

PT

DO

Vinhos

Cognac

FR

DO

Destilado vínico ou aguardente de vinho

Região do Cerrado Mineiro

BR

IP

Café

Vale dos Vinhedos

BR

IP

Vinho tinto, branco e espumantes

Franciacorta

IT

DO

Vinhos, vinhos espumantes e bebidas alcoólicas

Pampa Gaúcho da Campanha Meridional

BR

IP

Carne Bovina e seus derivados

Paraty

BR

IP

Aguardentes, tipo cachaça e aguardente composta azulada

Pedido de registro arquivado

Cerrado

BR

DO

Café

Água Mineral Natural Terra Alta

BR

IP

Serviços auxiliares de águas minerais e gasosas

Água Mineral Natural Terra Alta

BR

IP

Águas minerais e gasosas, engarrafamento

Região do Seridó do Estado da Paraíba

BR

DO

Algodão colorido

Santa Rita do Sapucaí – O Vale da Eletrônica

BR

IP

Equipamentos eletrônicos e de telecomunicação

Região do Munic. de Serra Negra do Est. S.P.

BR

IP

Água Mineral, malhas, artesanato, hotéis, turismo

Chianti Classico

IT

DO

Vinhos

Solingen

DE

IP

Facas, tesouras, pinças (...) em aço não ligado

Pedido de registro indeferido

Parma

IT

DO

Presunto

Terras Altas

BR

IP

Café

Alto Paraíso

BR

IP

Café

Roquefort

FR

DO

Queijos

Asti

IT

DO

Vinhos

Pedido de registro em análise

San Daniele

IT

DO

Coxas de suínos frescas, presunto defumado cru

Padana (DO Grana Padano)

IT

DO

Queijo

Vale do Submédio São Francisco

BR

IP

Uvas de mesa e manga

Alta Mogiana Speciality Coffees

BR

IP

Café

Vale do Sinos

BR

IP

Couro Acabado

Regiões dos Cafés da Serra da Mantiqueira

BR

IP

Café

Fonte: Elaborado com base em http://www.inpi.gov.br/menu-esquerdo/indicacao/andamento-processual, acessado em 18 de setembro de 2008.

Legenda para países: PT (Portugal), FR (França), BR (Brasil), IT (Itália), DE (Alemanha).

Por derradeiro, embora não conste da tabela, do site do INPI consta a informação de que no dia 1º de outubro de 2008 foi depositado no Instituto o pedido de registro de uma Indicação Geográfica (o site não informa se trata-se de uma IP ou uma DO) para vinhos espumantes de Pinto Bandeira.

Um brinde às novas Indicações Geográficas brasileiras!

Kelly Lissandra Bruch é Doutoranda em Direito Privado - PPGD/UFRGS - Université Rennes 1, Consultora Jurídica do Instituto Brasileiro do Vinho – IBRAVIN, Professora Licenciada – Ulbra, pesquisadora bolsista CAPES-Colégio Doutoral Franco-Brasileiro.

Texto publicado (contendo alterações) em: Jornal A Vindima - O Jornal da Vitivinicultura Brasileira, Editora Século Novo Ltda. - Flores da Cunha - RS – Brasil, p. 17-19, outubro/novembro 2008.

Análise da legislação brasileira sobre Indicações Geográficas

Segunda Parte

Por Kelly Lissandra Bruch

O Brasil é um país que apresenta muitas peculiaridades regionais, tais como tradições, culturas e costumes que o tornam único e ao mesmo tempo múltiplo. Contudo, pouco se conhece desta diversidade regional e há muito a ser feito para que todas estas facetas se tornem conhecidas, assim como valorizadas e preservadas, especialmente por aqueles que residem em cada uma destas regiões.

Um exemplo desta diversidade é a produção vitivinícola, que se destaca sobremaneira no Rio Grande do Sul, região na qual se encontra localizada cerca de 90% da produção nacional de vinhos e derivados da uva e do vinho. Em várias regiões, imigrantes de diversas procedências trouxeram a cultura da produção do vinho e a adaptaram às características peculiares de cada uma destas regiões nas quais se estabeleceram.

Uma destas regiões é a Serra Gaúcha. Esta região caracteriza-se por se localizar em uma altitude elevada, com muitos declives e aclives, alta umidade atmosférica, dentre outras peculiaridades, cujo conjunto edafoclimátio influi sobremaneira especialmente no cultivo da videira, resultando em um vinho com características diferenciadas.

Contudo, não basta a referida região produzir vinhos diferenciados e ter se tornado conhecida por esta produção. Faz-se necessário reconhecer estes atributos, garantindo a longevidade da cultura da videira e o desenvolvimento da região. Uma das formas de se garantir este reconhecimento pode se dar por meio da proteção jurídica de sinais distintivos que a diferencie de outras regiões produtoras de vinho.

Dentro da legislação brasileira, várias possibilidades se apresentam para concretizar esta distinção. A mais conhecida é a proteção de um sinal distintivo por meio do registro de uma marca de produto, a qual busca identificar, por exemplo, o vinho e o seu produtor. Como se trata de uma região e não apenas de um produtor, esta não seria a estratégia mais adequada.

Por se tratar de uma grande coletividade, outras possibilidades poderiam ser apresentadas. A primeira seria o registro de uma marca coletiva, a qual mediante uma designação única englobasse todos os produtores. A segunda seria a proteção mediante o instituto da Indicação Geográfica - IG, que busca mais precisamente destacar no produto a sua origem geográfica e as características advindas desta relação.

Neste segundo artigo, que abordará de forma mais prática esta segunda possibilidade, o que se pretende é olhar a IG sob diferentes óticas.

A IG trata-se de um instituto que, em seu nascedouro, tinha como finalidade a repressão à concorrência desleal. Esta necessidade nasce quando, em meados do século IX, uma grande praga, denominada phylloxera devasta grande parte dos vinhedos europeus. A falta generalizada de vinhos leva mercadores a buscarem outros vinhos em regiões distantes e não tradicionalmente produtoras. Como eram desconhecidos, os comerciantes colocavam sobre estes vinhos o nome de uma região que já era conhecida como produtora de vinhos, para que este tivesse uma melhor aceitação. Claro que esta prática ludibriava os consumidores de vinho e acabava por prejudicar o produtor de uvas e vinhos provenientes das localidades conhecidas. Com a recuperação dos vinhedos europeus, mediante a utilização da técnica da enxertia que permitiam às videiras resistirem a esta praga, os vinhos verdadeiramente originados das localidades conhecidas buscaram retomar seu espaço, fazendo nascer a concepção da valorização da verdadeira indicação geográfica, em face das falsas indicações que se apresentavam no mercado.

A proteção da IG nasce, então, como um direito negativo, um direito de repressão às falsas IGs reconhecido internacionalmente por meio do Acordo de Madrid, de 1981, que trata especificamente da repressão às falsas indicações de procedência das mercadorias. Esta lógica também se verifica na Convenção União de Paris de 1883.

O acordo de Lisboa, de 1958, inicia uma mudança nesta concepção, quando passa a compreender as IGs como direito positivo, estabelecendo inclusive um registro internacional das denominações de origem.

Não se trata mais apenas de uma repressão à falsa procedência, mas da concessão de um direito exclusivo de uso de um nome geográfico que se refira a um produto proveniente da localidade referida, cujas qualidades estejam ligadas ao meio geográfico onde este é elaborado e à maneira como as pessoas que residem neste lugar o elaboram.

Assim, mediante a compreensão da influência edafoclimática, ou seja, do clima, do solo, do relevo e outros requisitos geográficos, bem como a percepção da influência das técnicas agrícolas utilizadas para a produção de um determinado produto em cada localidade e que remontavam à origem dos povos destas localidades, verificou-se que havia algo de essencialmente diferenciador em determinadas regiões para determinados produtos.

O primeiro produto a ter sua origem percebida, reconhecida e protegida, mediante um sinal diferenciador, foi o vinho. Por este motivo, na maioria dos acordos internacionais e especialmente nos ordenamentos jurídicos dos países tradicionais, há uma proteção diferenciada para vinhos e derivados e outra para os demais alimentos, outros produtos e, em alguns países como no caso do Brasil, para serviços.

O TRIPs – Acordo sobre os Aspectos de Direito de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio, alterou e simplificou o conceito de IG que traziam os acordos internacionais anteriores. Dentre outras alterações, permite o TRIPs a proteção de uma expressão como IG que não seja necessariamente o nome de uma localidade, região, estado ou país. Além disso, possibilitou que a identificação do produto com o meio geográfico pudesse se dar por meio da comprovação de que determinada qualidade, reputação ou outra característica do produto seja essencialmente atribuída à sua origem geográfica.

Em suma, no âmbito internacional não há uma harmonização relacionada ao que é uma IG, bem como não há construções equânimes referentes a sua natureza jurídica, direito de uso, âmbito de proteção, dentre outros. Se internacionalmente este conceito ainda não é claro, esta construção também ainda não se faz nítida no Brasil.

No âmbito brasileiro é a Lei 9.279/1996, em seus artigos 176 a 182 e 192 a 194, que regulam as IGs, compreendidas nestas as Indicações de Procedência e as Denominações de Origem. Como complemento a esta lei, o artigo 182 estabelece, em seu parágrafo único que o Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI, estabelecerá as condições de registro das IGs.

O resultado desta disposição é a Resolução n. 75/2000 do INPI que, em seus vinte e três artigos, acabou tratando bem mais do que apenas das condições de registro.

1 - Natureza declaratória

Primeiramente, em seu artigo 1, parágrafo único, a Resolução 75/2000 determina que a natureza do registro realizado junto ao INPI é de natureza declaratória e implica no reconhecimento da IG. Isso significa que uma IG existe e se consolida ao longo do tempo, independentemente de qualquer registro, e o que se faz no INPI é meramente se reconhecer a sua pré-existência. Em nem todos os países se compreende a IG desta forma. Um dos resultados negativos desta disposição seria entender que todas as IGs existentes no mundo encontram-se reconhecidas pelo Brasil, independentemente de registro. Isso poderia levar a uma grande confusão, pois poderia resultar na impossibilidade de uso de expressões que já caíram em domínio público, como poderia ser o caso de “parmesão” para queijo, que é uma IG reconhecida na Itália, mas que no Brasil apenas significa um queijo maturado forte. Se por acaso alguém colocasse na embalagem do queijo a expressão “queijo maturado forte”, você o entenderia como sendo um queijo parmesão? De outra forma, a designação “parmesão”, leva você a crer que este foi feito na região de Parma, na Itália? Bem, então a natureza declaratória do registro certamente poderia trazer problemas.

2 - Titularidade

De um lado, o artigo 182 da Lei 9.279/1996 apenas fala que “o uso da IG é restrito aos produtores e prestadores de serviço estabelecidos no local, exigindo-se, ainda, em relação às denominações de origem, o atendimento de requisitos de qualidade”, referindo-se assim, a um possível direito de uso.

Já o artigo 5. da Resolução 75/2000, embora não diga explicitamente quem é o titular da IG, cria-o estabelecendo que “as associações, os institutos e as pessoas jurídicas representativas da coletividade legitimada ao uso exclusivo do nome geográfico e estabelecidas no respectivo território” podem requerer o registro, na qualidade de substitutos processuais. Estabeleceu ainda a possibilidade, em seu parágrafo primeiro, de um único produtor registrar em seu nome próprio uma IG, se este for o único legitimado ao seu uso exclusivo – entenda-se: o único localizado naquela região.

Desta forma, teria-se um direito de propriedade sobre a IG. Em se admitindo esta hipótese, quem seria o proprietário? Aquele que requereu o registro (a Associação ou Instituição) ou a titularidade do direito é dos produtores ou prestadores de serviço estabelecidos no local. Segundo a Resolução a opção correta seria a segunda. Mas, tratando-se de um direito de exclusividade de uso, este direito seria de todos os membros da coletividade – todos os produtores ou prestadores de serviço localizados dentro da região ou localidade – ou apenas daqueles que fazem parte da Associação ou Instituição? Quem faz parte da Associação pode impedir aos demais de utilizar a IG? E quem não participou da criação desta Associação, não investiu tempo e dinheiro para sua constituição e consolidação, teria assim mesmo direito de utilizar a IG? Esta é uma questão bastante polêmica e ainda incontroversa.

3 - Requerimento do Registro

O artigo 6° da Resolução 75/2000 trata do requerimento do pedido de registro da IG. Em suma, o pedido de registro deve ser apresentado ao INPI, mediante requerimento, no qual conste o nome geográfico, a descrição do produto ou serviço e as características do produto ou serviço.

Ressalta-se que este registro deve-se referir a um único nome, embora possa abranger mais de um produto, já que a Resolução a isso não restringe. Somado a isso deve ser apresentado um instrumento hábil que comprove a legitimidade do requerente, o regulamento de uso do nome geográfico, um instrumento oficial que delimita a área geográfica, etiquetas, quando se tratar de representação gráfica ou figurativa da denominação geográfica ou de representação geográfica de país, cidade, região ou localidade do território, procuração se for o caso e comprovante de pagamento da retribuição.

Neste requerimento dois requisitos chamam atenção: o regulamento de uso do nome geográfico e o instrumento oficial que delimita a área geográfica.

Com relação ao regulamento de uso, não o exigia a Lei nem a Resolução tão pouco esclarece o que este deve conter. Por analogia, as IGs reconhecidas até o presente momento têm utilizado por base o caderno de uso das IGs européias. Todavia, nada impede ou determina quais são os requisitos mínimos deste regulamento, nem que limites mínimos este deve obedecer.

Para exemplificar, suponha-se que enquanto Regulamento de Uso de uma IG AA para vinhos determina: de onde deve vir a uva e como ela será cultivada, permitindo que apenas 10% venha de outras localidades; onde esta deve ser processada; como deverá ser elaborado o vinho; onde e como deverá envelhecer; etc o Regulamento de Uso de uma IG BB para vinhos determine que: as uvas poderão ser procedentes da região em uma porcentagem mínima de 30%, podendo ou não ser processadas nesta. Parecem bastante discrepantes, mas hoje é possível registrar IGs que contemplem o primeiro ou o segundo regulamento.

Com relação ao instrumento oficial que determina a área geográfica, além de atribuir competência dúbia a órgãos não exatamente especificados, a Resolução a este atribui funções especiais.

Primeiramente este instrumento deveria, segundo o artigo 7 da Resolução 75/2000, ser “expedido pelo órgão competente de cada Estado, sendo competentes, no Brasil, no âmbito específico de suas competências, a União Federal, representada pelos Ministérios afins ao produto ou serviço distinguido com o nome geográfico, e os Estados, representados pelas Secretarias afins ao produto ou serviço distinguido com o nome geográfico”. Ora, quem deve expedir o instrumento: o órgão da União ou do Estado? Que Secretarias, que Ministérios? Estes têm competência para delimitar a área geográfica de uma IG? Como deve ser a expedição deste instrumento oficial? Isso está sendo observado hoje?

Além disso, ou seja, além de delimitar a área geográfica, este instrumento oficial deverá ainda:

a) no caso de uma Indicação de Procedência:

- Indicar os “elementos que comprovem ter o nome geográfico se tornado conhecido como centro de extração, produção ou fabricação do produto ou de prestação do serviço;”

- Indicar os “elementos que comprovem a existência de uma estrutura de controle sobre os produtores ou prestadores de serviços que tenham o direito ao uso exclusivo da indicação de procedência, bem como sobre o produto ou a prestação do serviço distinguido com a indicação de procedência; e

- indicar os “elementos que comprovem estar os produtores ou prestadores de serviços estabelecidos na área geográfica demarcada e exercendo, efetivamente, as atividades de produção ou de prestação do serviço;”

b) no caso de uma Denominação de Origem, deverá, além dos elementos acima:

- conter a “descrição das qualidades e características do produto ou do serviço que se devam, exclusiva ou essencialmente, ao meio geográfico, incluindo os fatores naturais e humanos;”

- conter a “descrição do processo ou método de obtenção do produto ou do serviço, que devem ser locais, leais e constantes;”

- indicar os “elementos que comprovem a existência de uma estrutura de controle sobre os produtores ou prestadores de serviços que tenham o direito ao uso exclusivo da denominação de origem, bem como sobre o produto ou a prestação do serviço distinguido com a denominação de origem; e

- indicar os “elementos que comprovem estar os produtores ou prestadores de serviços estabelecidos na área geográfica demarcada e exercendo, efetivamente, as atividades de produção ou de prestação do serviço.”


Indicação de Procedência

Denominação de Origem

Reputação

Ter se tornado conhecido

---

Controle

Estrutura de controle

Estrutura de Controle

Titulares

Produtores estabelecidos na região

Produtores estabelecidos na região

Qualidades

Características

---

Descrição de qualidades e características atribuídas ao meio geográfico

Processos

---

processo ou método de obtenção do produto

Fonte: elaboração própria com base na Resolução 75/2000.


O que primeiramente se questiona é se estes órgãos estaduais e federais têm competência para realizar estas funções, delegadas por meio de uma Resolução de uma Autarquia Federal. Em segundo lugar, se estes têm capacidade técnica e de pessoal para atender a esta demanda. Hoje, um órgão que vêm cumprindo esta incumbência é a EMBRAPA – Empresa Brasileira de Agropecuária. Mas, segundo esta Resolução, teria ela competência, embora não se questione a sua capacidade?

Além disso, por se tratar de um suposto direito de propriedade, quem deveria comprovar que existe estrutura de controle ou que o nome geográfico se tornou conhecido, ou ainda, qual o método para obter o produto ou a qualidade que neste se expressa, etc, não deveria ser o próprio titular e não um órgão público?

Só para complementar, parece inadequado que uma Denominação de Origem não precise ter se tornado conhecida, ao contrário de uma Indicação de Procedência!

Ou seja, são estes requisitos, extremamente genéricos, que fazem com que o Instituto Nacional da Propriedade Industrial, órgão legalmente indicado para estabelecer as condições de registro das IGs, conforme o artigo 182, parágrafo único da Lei n. 9.279/1996, declare a existência de uma IG.

Nos demais países, em especial os constituintes do velho mundo vitivinícola, além destes requisitos genéricos são estabelecidas regras mínimas a serem observadas, cumpridas e certificadas para cada tipo de produto. Além disso, como em regra as IGs referem-se a produtos agroalimentares, os responsáveis pelo registro e acompanhamento das IGs são seus respectivos ministérios da agricultura.

Além destas regras mínimas, há órgãos oficiais ou acreditados que fazem periodicamente a verificação do cumprimento destes requisitos e os atestam mediante uma certificação que garante a veracidade de uma IG.

No Brasil, com a atual legislação em vigor, qualquer grupo de pessoas que constitua uma personalidade jurídica, cumprindo aos requisitos acima elencados, poderá requerer a declaração de uma IG. Inclusive o regulamento de uso do nome geográfico é elaborado pelo titular da IG, sem qualquer pré-requisito a ser obedecido. Desta maneira a regulação e a utilização deste direito é completamente disciplinada por um regulamento privado, sem qualquer ingerência pública. Na prática duas IG diversas podem utilizar-se de regras completamente diferentes, em que pese refiram-se a uma mesma categoria de produtos. São condições diferentes, em nível interno, para um mesmo patamar de proteção e que podem tanto colocar em condições desiguais de competição os produtores, quanto levar os consumidores a erro, posto que estes últimos não têm uma base jurídica que lhes garanta minimamente o que é uma IG, quiçá o que eles venham a encontrar em um produto acreditado como IG.

Em suma, os temas acima abordados tratam de diversos aspectos que resultam, de maneira direta ou direta, da compreensão exata da natureza jurídica de uma IG. E a falta de definição, conforme se abordou, traz conseqüências diretas para este instituto. Com esta motivação é que se pretendeu abordar o presente tema, para que, quando a sociedade requerer fundamentos para a utilização do instituto das IG – como já vem requerendo, possa se dar respostas seguras e fundamentadas, garantindo o uso deste instituto, o direito do produtor, o direito do consumidor e a possibilidade do poder público regular sua utilização.

Kelly Lissandra Bruch é Doutoranda em Direito Privado - PPGD/UFRGS - Université Rennes 1, Consultora Jurídica do Instituto Brasileiro do Vinho – IBRAVIN, Professora Licenciada – Ulbra, pesquisadora bolsista CAPES-Colégio Doutoral Franco-Brasileiro.

Texto publicado (contendo alterações) em: Jornal A Vindima - O Jornal da Vitivinicultura Brasileira, Editora Século Novo Ltda. - Flores da Cunha - RS – Brasil, p. 21-23, agosto/setembro 2008.