luni, noiembrie 10, 2008

Por fim, os problemas concretos das Indicações Geográficas brasileiras

Terceira Parte


Por Kelly Lissandra Bruch

Uma terceira e última palavra sobre as Indicações Geográficas (IGs) no Brasil. No primeiro artigo, abordou-se sua origem, regulação internacional e legal. No segundo, tratou-se dos problemas advindos da falta de uma correta e completa regularização do registro e do uso das IGs no país. Por derradeiro, pretende-se apontar alguns problemas concretos que a legislação (ou falta de) vem provocando no âmbito das IGs brasileiras já reconhecidas. Claro que se deve evidenciar que o problema legal não opera sozinho: sempre há alguém que se aproveita das falhas da lei em proveito próprio.

Para ilustrar o que se pretende mostrar, utilizar-se-á, no presente artigo, um dos exemplos mais conhecidos de IG brasileira: o Vale dos Vinhedos.

1 – O titular e seus direitos

A primeira questão que se levanta é: Quem é o titular de uma IG? E a segunda: Quais são os direitos que o titular ou usuário de uma IG possui?

A Lei 9.279/1996, nos artigos 176 a 182, não aponta o titular nem explicita quais direitos lhe são conferidos. Aliás, a lei nem fala em direitos – muito menos no titular destes.

Interpretando as disposições aplicadas às demais figuras dos direitos de propriedade industrial, tais como as patentes (artigo 42 da Lei 9.279/1996) e as marcas (artigo 130 da Lei 9.279/1996), e considerando-se as figuras que a lei estabelece como crimes contra as IGs (artigos 192 a 194 da Lei 9.279/1996), se pode concluir, em um primeiro momento, que há um direito de impedir que um terceiro, sem consentimento, utilize a IG em seus produtos ou serviços, incluindo-se nisso o nome e os demais sinais figurativos que a distinguem. Com relação ao titular desse direito, deixemos para buscar uma resposta mais ao final...

2 – O terceiro

Da definição deste direito, surge o problema de saber quem é esse terceiro. E muitas situações concretas se apresentam para buscar definir quem é e quem não é o terceiro que se encontra impedido de utilizar a IG.

Primeira situação: alguém não se encontra instalado na região delimitada pela IG e utiliza o seu nome, embora não produza nem preste serviço nela. Neste caso, ele pode ser considerado o terceiro impedido de utilizar a IG, pois se pode aplicar o tipo penal descrito no artigo 192 da Lei 9.279/1996, posto que se está diante de uma FALSA Indicação Geográfica. Assim sendo, o que se pode fazer? Apresentar uma queixa-crime (já que se trata de uma ação penal privada e não de uma ação a ser movida pelo Ministério Público) ou impetrar uma ação cível de busca e apreensão, combinada com reparação de danos, com base na concorrência desleal. E não há previsão legal de nenhuma ingerência do poder público para tutelar este tipo de situação, que ocorre com freqüência.

Vale ressaltar, com relação a este rótulo, que só pode utilizar como endereço o nome da Indicação de Procedência aquele que tenha o seu endereço realmente com este nome. No caso, embora a “IP Vale dos Vinhedos” abranja parte dos municípios de Bento Gonçalves, Garibaldi e Monte Belo, somente quem se encontra situado no distrito do Vale dos Vinhedos, que faz parte apenas do município de Bento Gonçalves, pode utilizar como endereço o nome “Vale dos Vinhedos”. Sem destaque!

Segunda situação: Mas se esta mesma pessoa utiliza um termo retificativo, como ‘tipo’, ‘espécie’, ‘gênero’, ‘método’, ‘idêntico ao’, Vale dos Vinhedos, ela estaria infringindo a lei? Segundo o artigo 193, ela apenas estaria contrária à lei se não ressalvasse a VERDADEIRA procedência do produto ou serviço. Ou seja, facilmente poderia esta pessoa se utilizar da IG, desde que ressalvada a verdadeira origem! E isso para qualquer produto ou serviço.

Todavia, vale ressaltar que o TRIPs (Acordo sobre os Aspectos de Direito de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio), firmado pelo Brasil no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), determina, em seu artigo 23, que para vinhos e bebidas espirituosas é vedado o uso de termos retificativos. Contudo, o Brasil permite o uso destes termos, tanto na lei 9.279/1996 – Lei de Propriedade Industrial, artigo 193, quanto na lei 7.678/1988 – Lei do Vinho, artigo 49, parágrafo 2º, contrariando o acordo firmado.

Em suma, hoje é possível utilizar no Brasil, em qualquer produto, o nome de uma Indicação Geográfica, seguida de ‘tipo’, por exemplo, se for ressaltada no rótulo a verdadeira origem. Embora, fique claro, isso possa implicar em um ato de concorrência desleal e ser punido como tal.

Terceira situação: Um terceiro utiliza em sua marca comercial o nome da IG. Isso é permitido perante a lei? Segundo o artigo 194, isso é possível, desde que a procedência seja verdadeira. Ou seja, se alguém que produz vinhos no Vale dos Vinhedos tiver registrado uma marca que contenha este nome, poderá o utilizar, posto que a procedência não é falsa. Apenas ocorreria o crime tipificado no artigo 194 se alguém de outro lugar utilizasse em sua marca comercial o nome geográfico.

Para esta situação, há um caso concreto bastante ilustrativo. A cidade de Garibaldi, na Serra Gaúcha, é conhecida por produzir excelentes espumantes. Embora não haja uma IG depositada ou reconhecida no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) até o presente momento, pode-se considerá-la como tal. Todavia, a Cooperativa Vinícola Garibaldi Ltda. possui duas marcas, registradas no INPI, denominadas Garibaldi, sob número 007111410 e 007061897, ambas na classe 33 (para bebidas alcoólicas segundo a classificação de marcas), desde 22/07/1974, nas categorias nominativa (só o nome Garibaldi) e mista (nome + grafia especial). Fora isso, há mais dois registros concedidos (mas para outras classes de produtos) e dois pedidos requeridos com a palavra “Garibaldi”.

Neste caso, localizando-se a cooperativa no município de Garibaldi, ela não está indicando uma falsa procedência. Além disso, a cooperativa possui esta marca desde 1974. Se Garibaldi fosse reconhecido como IG para espumantes, como ficaria o uso desta marca? Seria possível reconhecer esta IG? Estas questões não encontram resposta legal até a presente data.

Situação semelhante é a do nome Salinas, cidade de Minas Gerais conhecida como produtora de cachaça ou aguardente de cana. Há 18 marcas registradas e 7 requeridas para este nome no INPI. Duas das marcas registradas são para a classe de bebidas alcoólicas: uma sob número 816669589, de 23/04/1992, de titularidade de Heleno Medrado Fernandes ME, e outra sob número 820034690, de 03/09/1997, do mesmo titular. Todavia, há todo um movimento para o reconhecimento deste nome como IG para cachaça. O que ocorreria? Neste caso, o terceiro seria o titular da marca? Ou poderia vir a ser proibido de utilizá-la? Como estes, existem inúmeros outros exemplos.

Na União Européia a resposta seria mais clara: como há uma prevalência legal declarada da IG sobre as marcas, ou esta marca seguiria convivendo com a IG ou o titular teria que deixar de usá-la, conforme se pode verificar nos Regulamentos da Comunidade Européia número 510/2006 – para produtos agroalimentares, número 110/2008 – para bebidas espirituosas e número 479/2008 – para vinhos.

3 - ‘Na carona’ de possíveis titulares...

Quarta situação: outra situação que se tem verificado é a possibilidade de um terceiro que se encontra na região delimitada utilizar o nome protegido, mas não fazer parte da associação que requereu o seu reconhecimento. Neste caso, estaria este terceiro violando os direitos de um possível titular? Segundo o artigo 182, o “uso da indicação geográfica é restrito aos produtores e prestadores de serviço estabelecidos no local, exigindo-se, ainda, em relação às denominações de origem, o atendimento de requisitos de qualidade.” Se o uso é restrito a quem se encontra estabelecido no local, pode-se depreender disso que este uso se estende a todo aquele que se encontra estabelecido neste local. Desta forma, o uso, perante a lei, não seria proibido. E isso tem ocorrido com muita freqüência.

O maior problema deste uso, que se dá sem que o usuário se submeta ao controle instituído para a IG, é o risco de tornar este termo genérico e de perder a sua distingüibilidade e mesmo a credibilidade perante o consumidor.

Bem, se este terceiro usa a IG sem autorização da associação e não está infringindo norma legal, poder-se-ia concluir, respondendo à pergunta inicial, que a associação não é a titular do direito, mas sim toda a coletividade que se encontra instalada no local. Ou, ainda, que não há um titular deste direito (já que a lei não o indicou), mas apenas existe um direito de uso da IG para aqueles que se encontram na região? Seria, portanto, um direito público e não um direito privado.

Na União Européia, de maneira geral, efetivamente não há um titular do direito sobre a ou à IG, posto que esta é entendida como um instituto de direito público. Desta forma, o que existe é uma licença / autorização para o uso do nome geográfico se o usuário se submeteu e foi aprovado pelos instrumentos de controle, que são geridos pelo poder público. Quem não segue este rito comete crime de ação penal pública, com pena severa, além de perda dos produtos e uma pesada multa.

Nos Estados Unidos da América a situação é exatamente o oposto: registra-se uma marca, que pode ser coletiva ou de certificação, com o nome geográfico, e o titular desta permite a quem cumprir o regulamento o uso desta nos produtos certificados. É um direito privado sobre uma marca geográfica.

No Brasil têm-se entendido de maneira geral que se trata de um direito privado, mas com um titular não muito claro, cujo gestor é a pessoa jurídica que requereu o reconhecimento. Todavia, poucos instrumentos concretos e eficazes foram postos à disposição destes gestores, que também exercem a função de controladores do sistema. E isso tem criado muitas dificuldades. Como proibir, por exemplo, um membro da Associação a utilizar em seus rótulos o nome ‘Vale dos Vinhedos’, no caso? Não é falsa Indicação de Procedência! Mas é um ‘tiro no próprio pé’...

4 - Outras questões não-reguladas

Além disso, outros problemas se apresentam. Não há, por exemplo, disciplina sobre uma IG registrada poder cair em desuso, seja por falta de uso pela coletividade, seja pelo desrespeito contínuo, seja pela diluição do nome.

De outra forma, embora diga o artigo 180 da Lei 9.279/1996 que quando o nome geográfico se houver tornado de uso comum, designando produto ou serviço, não será considerado Indicação Geográfica. Exemplo: a denominação Cognac foi reconhecida como IG no Brasil pelo INPI. Desta forma, embora Cognac seja uma IG, sua tradução, que é conhaque, pode ser usada como nome de produto segundo dispõe o artigo 8 da Lei de Bebidas, número 8.918/1994. Este nome é genérico ou não? Isso se estende, segundo os artigos 11, 20, 21 e 49, parágrafo 1º da Lei 7.678/1988 – Lei do Vinho, às denominações champanha, champagne, brandy, grappa, graspa e pisco.

Além disso, poderia uma IG ser anulada ou extinta? Não há disposição legal para tanto, do que se presume que, uma vez reconhecida, esta o será ad eternum, independentemente da conduta dos gestores da IG, dos produtores e prestadores de serviços e dos ‘terceiros’. Se os produtores localizados em uma IG registrada deixarem de cumprir o seu caderno regulador; se o órgão gestor não fizer o controle dos produtos ou serviços protegidos e não atuar em face dos seus associados que estão utilizando indevidamente o nome da IG ou de terceiros que estão usando indevidamente o nome da IG; o que aconteceria? Diz-se que o mercado regula estas situações. Mas, enquanto isso, como ficam os consumidores?

Uma IG poderia ser anulada por problemas formais, tais como: o regulamento é incompatível com a realidade da IG; os produtos, no caso de uma Denominação de Origem, não possuem características intrínsecas diferenciadas e atribuídas exclusivamente ao meio geográfico, composto este de fatores naturais e humanos?

Todas estas questões aguardam respostas legislativas, executivas e jurisprudenciais. Se os produtores e prestadores de serviços com interesse em ver reconhecidas suas Indicações Geográficas não atuarem, dificilmente elas virão. E se vierem, podem ser diversas do que é necessário à nossa realidade.

Por fim, novidades com relação às Indicações Geográficas brasileiras! Consultando o site do INPI, foi verificado que novas IGs foram requeridas, como Vale do Submédio São Francisco, para uvas de mesa e manga, bem como algumas foram indeferidas, especialmente Asti, para vinhos, e Roquefort, para queijos. Pelo menos agora claramente os produtores de vinho espumante moscatel poderão continuar a utilizar ‘tipo Asti’ ou ‘método Asti’ ou até a voltar a chamar o produto de ASTI – pelo menos no BRASIL. Quem foi mesmo que disse que utilizar esta palavra era proibido? Segue uma tabela de controle de andamento processual de pedidos de registro de Indicação Geográfica do INPI atualizada!

Andamento processual dos pedidos de registro de Indicação Geográfica no INPI

Situação

Nome geográfico

País

Espécie

Produto ou serviço

Registro

concedido

Região dos Vinhos Verdes

PT

DO

Vinhos

Cognac

FR

DO

Destilado vínico ou aguardente de vinho

Região do Cerrado Mineiro

BR

IP

Café

Vale dos Vinhedos

BR

IP

Vinho tinto, branco e espumantes

Franciacorta

IT

DO

Vinhos, vinhos espumantes e bebidas alcoólicas

Pampa Gaúcho da Campanha Meridional

BR

IP

Carne Bovina e seus derivados

Paraty

BR

IP

Aguardentes, tipo cachaça e aguardente composta azulada

Pedido de registro arquivado

Cerrado

BR

DO

Café

Água Mineral Natural Terra Alta

BR

IP

Serviços auxiliares de águas minerais e gasosas

Água Mineral Natural Terra Alta

BR

IP

Águas minerais e gasosas, engarrafamento

Região do Seridó do Estado da Paraíba

BR

DO

Algodão colorido

Santa Rita do Sapucaí – O Vale da Eletrônica

BR

IP

Equipamentos eletrônicos e de telecomunicação

Região do Munic. de Serra Negra do Est. S.P.

BR

IP

Água Mineral, malhas, artesanato, hotéis, turismo

Chianti Classico

IT

DO

Vinhos

Solingen

DE

IP

Facas, tesouras, pinças (...) em aço não ligado

Pedido de registro indeferido

Parma

IT

DO

Presunto

Terras Altas

BR

IP

Café

Alto Paraíso

BR

IP

Café

Roquefort

FR

DO

Queijos

Asti

IT

DO

Vinhos

Pedido de registro em análise

San Daniele

IT

DO

Coxas de suínos frescas, presunto defumado cru

Padana (DO Grana Padano)

IT

DO

Queijo

Vale do Submédio São Francisco

BR

IP

Uvas de mesa e manga

Alta Mogiana Speciality Coffees

BR

IP

Café

Vale do Sinos

BR

IP

Couro Acabado

Regiões dos Cafés da Serra da Mantiqueira

BR

IP

Café

Fonte: Elaborado com base em http://www.inpi.gov.br/menu-esquerdo/indicacao/andamento-processual, acessado em 18 de setembro de 2008.

Legenda para países: PT (Portugal), FR (França), BR (Brasil), IT (Itália), DE (Alemanha).

Por derradeiro, embora não conste da tabela, do site do INPI consta a informação de que no dia 1º de outubro de 2008 foi depositado no Instituto o pedido de registro de uma Indicação Geográfica (o site não informa se trata-se de uma IP ou uma DO) para vinhos espumantes de Pinto Bandeira.

Um brinde às novas Indicações Geográficas brasileiras!

Kelly Lissandra Bruch é Doutoranda em Direito Privado - PPGD/UFRGS - Université Rennes 1, Consultora Jurídica do Instituto Brasileiro do Vinho – IBRAVIN, Professora Licenciada – Ulbra, pesquisadora bolsista CAPES-Colégio Doutoral Franco-Brasileiro.

Texto publicado (contendo alterações) em: Jornal A Vindima - O Jornal da Vitivinicultura Brasileira, Editora Século Novo Ltda. - Flores da Cunha - RS – Brasil, p. 17-19, outubro/novembro 2008.

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