luni, noiembrie 10, 2008

Análise da legislação brasileira sobre Indicações Geográficas

Segunda Parte

Por Kelly Lissandra Bruch

O Brasil é um país que apresenta muitas peculiaridades regionais, tais como tradições, culturas e costumes que o tornam único e ao mesmo tempo múltiplo. Contudo, pouco se conhece desta diversidade regional e há muito a ser feito para que todas estas facetas se tornem conhecidas, assim como valorizadas e preservadas, especialmente por aqueles que residem em cada uma destas regiões.

Um exemplo desta diversidade é a produção vitivinícola, que se destaca sobremaneira no Rio Grande do Sul, região na qual se encontra localizada cerca de 90% da produção nacional de vinhos e derivados da uva e do vinho. Em várias regiões, imigrantes de diversas procedências trouxeram a cultura da produção do vinho e a adaptaram às características peculiares de cada uma destas regiões nas quais se estabeleceram.

Uma destas regiões é a Serra Gaúcha. Esta região caracteriza-se por se localizar em uma altitude elevada, com muitos declives e aclives, alta umidade atmosférica, dentre outras peculiaridades, cujo conjunto edafoclimátio influi sobremaneira especialmente no cultivo da videira, resultando em um vinho com características diferenciadas.

Contudo, não basta a referida região produzir vinhos diferenciados e ter se tornado conhecida por esta produção. Faz-se necessário reconhecer estes atributos, garantindo a longevidade da cultura da videira e o desenvolvimento da região. Uma das formas de se garantir este reconhecimento pode se dar por meio da proteção jurídica de sinais distintivos que a diferencie de outras regiões produtoras de vinho.

Dentro da legislação brasileira, várias possibilidades se apresentam para concretizar esta distinção. A mais conhecida é a proteção de um sinal distintivo por meio do registro de uma marca de produto, a qual busca identificar, por exemplo, o vinho e o seu produtor. Como se trata de uma região e não apenas de um produtor, esta não seria a estratégia mais adequada.

Por se tratar de uma grande coletividade, outras possibilidades poderiam ser apresentadas. A primeira seria o registro de uma marca coletiva, a qual mediante uma designação única englobasse todos os produtores. A segunda seria a proteção mediante o instituto da Indicação Geográfica - IG, que busca mais precisamente destacar no produto a sua origem geográfica e as características advindas desta relação.

Neste segundo artigo, que abordará de forma mais prática esta segunda possibilidade, o que se pretende é olhar a IG sob diferentes óticas.

A IG trata-se de um instituto que, em seu nascedouro, tinha como finalidade a repressão à concorrência desleal. Esta necessidade nasce quando, em meados do século IX, uma grande praga, denominada phylloxera devasta grande parte dos vinhedos europeus. A falta generalizada de vinhos leva mercadores a buscarem outros vinhos em regiões distantes e não tradicionalmente produtoras. Como eram desconhecidos, os comerciantes colocavam sobre estes vinhos o nome de uma região que já era conhecida como produtora de vinhos, para que este tivesse uma melhor aceitação. Claro que esta prática ludibriava os consumidores de vinho e acabava por prejudicar o produtor de uvas e vinhos provenientes das localidades conhecidas. Com a recuperação dos vinhedos europeus, mediante a utilização da técnica da enxertia que permitiam às videiras resistirem a esta praga, os vinhos verdadeiramente originados das localidades conhecidas buscaram retomar seu espaço, fazendo nascer a concepção da valorização da verdadeira indicação geográfica, em face das falsas indicações que se apresentavam no mercado.

A proteção da IG nasce, então, como um direito negativo, um direito de repressão às falsas IGs reconhecido internacionalmente por meio do Acordo de Madrid, de 1981, que trata especificamente da repressão às falsas indicações de procedência das mercadorias. Esta lógica também se verifica na Convenção União de Paris de 1883.

O acordo de Lisboa, de 1958, inicia uma mudança nesta concepção, quando passa a compreender as IGs como direito positivo, estabelecendo inclusive um registro internacional das denominações de origem.

Não se trata mais apenas de uma repressão à falsa procedência, mas da concessão de um direito exclusivo de uso de um nome geográfico que se refira a um produto proveniente da localidade referida, cujas qualidades estejam ligadas ao meio geográfico onde este é elaborado e à maneira como as pessoas que residem neste lugar o elaboram.

Assim, mediante a compreensão da influência edafoclimática, ou seja, do clima, do solo, do relevo e outros requisitos geográficos, bem como a percepção da influência das técnicas agrícolas utilizadas para a produção de um determinado produto em cada localidade e que remontavam à origem dos povos destas localidades, verificou-se que havia algo de essencialmente diferenciador em determinadas regiões para determinados produtos.

O primeiro produto a ter sua origem percebida, reconhecida e protegida, mediante um sinal diferenciador, foi o vinho. Por este motivo, na maioria dos acordos internacionais e especialmente nos ordenamentos jurídicos dos países tradicionais, há uma proteção diferenciada para vinhos e derivados e outra para os demais alimentos, outros produtos e, em alguns países como no caso do Brasil, para serviços.

O TRIPs – Acordo sobre os Aspectos de Direito de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio, alterou e simplificou o conceito de IG que traziam os acordos internacionais anteriores. Dentre outras alterações, permite o TRIPs a proteção de uma expressão como IG que não seja necessariamente o nome de uma localidade, região, estado ou país. Além disso, possibilitou que a identificação do produto com o meio geográfico pudesse se dar por meio da comprovação de que determinada qualidade, reputação ou outra característica do produto seja essencialmente atribuída à sua origem geográfica.

Em suma, no âmbito internacional não há uma harmonização relacionada ao que é uma IG, bem como não há construções equânimes referentes a sua natureza jurídica, direito de uso, âmbito de proteção, dentre outros. Se internacionalmente este conceito ainda não é claro, esta construção também ainda não se faz nítida no Brasil.

No âmbito brasileiro é a Lei 9.279/1996, em seus artigos 176 a 182 e 192 a 194, que regulam as IGs, compreendidas nestas as Indicações de Procedência e as Denominações de Origem. Como complemento a esta lei, o artigo 182 estabelece, em seu parágrafo único que o Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI, estabelecerá as condições de registro das IGs.

O resultado desta disposição é a Resolução n. 75/2000 do INPI que, em seus vinte e três artigos, acabou tratando bem mais do que apenas das condições de registro.

1 - Natureza declaratória

Primeiramente, em seu artigo 1, parágrafo único, a Resolução 75/2000 determina que a natureza do registro realizado junto ao INPI é de natureza declaratória e implica no reconhecimento da IG. Isso significa que uma IG existe e se consolida ao longo do tempo, independentemente de qualquer registro, e o que se faz no INPI é meramente se reconhecer a sua pré-existência. Em nem todos os países se compreende a IG desta forma. Um dos resultados negativos desta disposição seria entender que todas as IGs existentes no mundo encontram-se reconhecidas pelo Brasil, independentemente de registro. Isso poderia levar a uma grande confusão, pois poderia resultar na impossibilidade de uso de expressões que já caíram em domínio público, como poderia ser o caso de “parmesão” para queijo, que é uma IG reconhecida na Itália, mas que no Brasil apenas significa um queijo maturado forte. Se por acaso alguém colocasse na embalagem do queijo a expressão “queijo maturado forte”, você o entenderia como sendo um queijo parmesão? De outra forma, a designação “parmesão”, leva você a crer que este foi feito na região de Parma, na Itália? Bem, então a natureza declaratória do registro certamente poderia trazer problemas.

2 - Titularidade

De um lado, o artigo 182 da Lei 9.279/1996 apenas fala que “o uso da IG é restrito aos produtores e prestadores de serviço estabelecidos no local, exigindo-se, ainda, em relação às denominações de origem, o atendimento de requisitos de qualidade”, referindo-se assim, a um possível direito de uso.

Já o artigo 5. da Resolução 75/2000, embora não diga explicitamente quem é o titular da IG, cria-o estabelecendo que “as associações, os institutos e as pessoas jurídicas representativas da coletividade legitimada ao uso exclusivo do nome geográfico e estabelecidas no respectivo território” podem requerer o registro, na qualidade de substitutos processuais. Estabeleceu ainda a possibilidade, em seu parágrafo primeiro, de um único produtor registrar em seu nome próprio uma IG, se este for o único legitimado ao seu uso exclusivo – entenda-se: o único localizado naquela região.

Desta forma, teria-se um direito de propriedade sobre a IG. Em se admitindo esta hipótese, quem seria o proprietário? Aquele que requereu o registro (a Associação ou Instituição) ou a titularidade do direito é dos produtores ou prestadores de serviço estabelecidos no local. Segundo a Resolução a opção correta seria a segunda. Mas, tratando-se de um direito de exclusividade de uso, este direito seria de todos os membros da coletividade – todos os produtores ou prestadores de serviço localizados dentro da região ou localidade – ou apenas daqueles que fazem parte da Associação ou Instituição? Quem faz parte da Associação pode impedir aos demais de utilizar a IG? E quem não participou da criação desta Associação, não investiu tempo e dinheiro para sua constituição e consolidação, teria assim mesmo direito de utilizar a IG? Esta é uma questão bastante polêmica e ainda incontroversa.

3 - Requerimento do Registro

O artigo 6° da Resolução 75/2000 trata do requerimento do pedido de registro da IG. Em suma, o pedido de registro deve ser apresentado ao INPI, mediante requerimento, no qual conste o nome geográfico, a descrição do produto ou serviço e as características do produto ou serviço.

Ressalta-se que este registro deve-se referir a um único nome, embora possa abranger mais de um produto, já que a Resolução a isso não restringe. Somado a isso deve ser apresentado um instrumento hábil que comprove a legitimidade do requerente, o regulamento de uso do nome geográfico, um instrumento oficial que delimita a área geográfica, etiquetas, quando se tratar de representação gráfica ou figurativa da denominação geográfica ou de representação geográfica de país, cidade, região ou localidade do território, procuração se for o caso e comprovante de pagamento da retribuição.

Neste requerimento dois requisitos chamam atenção: o regulamento de uso do nome geográfico e o instrumento oficial que delimita a área geográfica.

Com relação ao regulamento de uso, não o exigia a Lei nem a Resolução tão pouco esclarece o que este deve conter. Por analogia, as IGs reconhecidas até o presente momento têm utilizado por base o caderno de uso das IGs européias. Todavia, nada impede ou determina quais são os requisitos mínimos deste regulamento, nem que limites mínimos este deve obedecer.

Para exemplificar, suponha-se que enquanto Regulamento de Uso de uma IG AA para vinhos determina: de onde deve vir a uva e como ela será cultivada, permitindo que apenas 10% venha de outras localidades; onde esta deve ser processada; como deverá ser elaborado o vinho; onde e como deverá envelhecer; etc o Regulamento de Uso de uma IG BB para vinhos determine que: as uvas poderão ser procedentes da região em uma porcentagem mínima de 30%, podendo ou não ser processadas nesta. Parecem bastante discrepantes, mas hoje é possível registrar IGs que contemplem o primeiro ou o segundo regulamento.

Com relação ao instrumento oficial que determina a área geográfica, além de atribuir competência dúbia a órgãos não exatamente especificados, a Resolução a este atribui funções especiais.

Primeiramente este instrumento deveria, segundo o artigo 7 da Resolução 75/2000, ser “expedido pelo órgão competente de cada Estado, sendo competentes, no Brasil, no âmbito específico de suas competências, a União Federal, representada pelos Ministérios afins ao produto ou serviço distinguido com o nome geográfico, e os Estados, representados pelas Secretarias afins ao produto ou serviço distinguido com o nome geográfico”. Ora, quem deve expedir o instrumento: o órgão da União ou do Estado? Que Secretarias, que Ministérios? Estes têm competência para delimitar a área geográfica de uma IG? Como deve ser a expedição deste instrumento oficial? Isso está sendo observado hoje?

Além disso, ou seja, além de delimitar a área geográfica, este instrumento oficial deverá ainda:

a) no caso de uma Indicação de Procedência:

- Indicar os “elementos que comprovem ter o nome geográfico se tornado conhecido como centro de extração, produção ou fabricação do produto ou de prestação do serviço;”

- Indicar os “elementos que comprovem a existência de uma estrutura de controle sobre os produtores ou prestadores de serviços que tenham o direito ao uso exclusivo da indicação de procedência, bem como sobre o produto ou a prestação do serviço distinguido com a indicação de procedência; e

- indicar os “elementos que comprovem estar os produtores ou prestadores de serviços estabelecidos na área geográfica demarcada e exercendo, efetivamente, as atividades de produção ou de prestação do serviço;”

b) no caso de uma Denominação de Origem, deverá, além dos elementos acima:

- conter a “descrição das qualidades e características do produto ou do serviço que se devam, exclusiva ou essencialmente, ao meio geográfico, incluindo os fatores naturais e humanos;”

- conter a “descrição do processo ou método de obtenção do produto ou do serviço, que devem ser locais, leais e constantes;”

- indicar os “elementos que comprovem a existência de uma estrutura de controle sobre os produtores ou prestadores de serviços que tenham o direito ao uso exclusivo da denominação de origem, bem como sobre o produto ou a prestação do serviço distinguido com a denominação de origem; e

- indicar os “elementos que comprovem estar os produtores ou prestadores de serviços estabelecidos na área geográfica demarcada e exercendo, efetivamente, as atividades de produção ou de prestação do serviço.”


Indicação de Procedência

Denominação de Origem

Reputação

Ter se tornado conhecido

---

Controle

Estrutura de controle

Estrutura de Controle

Titulares

Produtores estabelecidos na região

Produtores estabelecidos na região

Qualidades

Características

---

Descrição de qualidades e características atribuídas ao meio geográfico

Processos

---

processo ou método de obtenção do produto

Fonte: elaboração própria com base na Resolução 75/2000.


O que primeiramente se questiona é se estes órgãos estaduais e federais têm competência para realizar estas funções, delegadas por meio de uma Resolução de uma Autarquia Federal. Em segundo lugar, se estes têm capacidade técnica e de pessoal para atender a esta demanda. Hoje, um órgão que vêm cumprindo esta incumbência é a EMBRAPA – Empresa Brasileira de Agropecuária. Mas, segundo esta Resolução, teria ela competência, embora não se questione a sua capacidade?

Além disso, por se tratar de um suposto direito de propriedade, quem deveria comprovar que existe estrutura de controle ou que o nome geográfico se tornou conhecido, ou ainda, qual o método para obter o produto ou a qualidade que neste se expressa, etc, não deveria ser o próprio titular e não um órgão público?

Só para complementar, parece inadequado que uma Denominação de Origem não precise ter se tornado conhecida, ao contrário de uma Indicação de Procedência!

Ou seja, são estes requisitos, extremamente genéricos, que fazem com que o Instituto Nacional da Propriedade Industrial, órgão legalmente indicado para estabelecer as condições de registro das IGs, conforme o artigo 182, parágrafo único da Lei n. 9.279/1996, declare a existência de uma IG.

Nos demais países, em especial os constituintes do velho mundo vitivinícola, além destes requisitos genéricos são estabelecidas regras mínimas a serem observadas, cumpridas e certificadas para cada tipo de produto. Além disso, como em regra as IGs referem-se a produtos agroalimentares, os responsáveis pelo registro e acompanhamento das IGs são seus respectivos ministérios da agricultura.

Além destas regras mínimas, há órgãos oficiais ou acreditados que fazem periodicamente a verificação do cumprimento destes requisitos e os atestam mediante uma certificação que garante a veracidade de uma IG.

No Brasil, com a atual legislação em vigor, qualquer grupo de pessoas que constitua uma personalidade jurídica, cumprindo aos requisitos acima elencados, poderá requerer a declaração de uma IG. Inclusive o regulamento de uso do nome geográfico é elaborado pelo titular da IG, sem qualquer pré-requisito a ser obedecido. Desta maneira a regulação e a utilização deste direito é completamente disciplinada por um regulamento privado, sem qualquer ingerência pública. Na prática duas IG diversas podem utilizar-se de regras completamente diferentes, em que pese refiram-se a uma mesma categoria de produtos. São condições diferentes, em nível interno, para um mesmo patamar de proteção e que podem tanto colocar em condições desiguais de competição os produtores, quanto levar os consumidores a erro, posto que estes últimos não têm uma base jurídica que lhes garanta minimamente o que é uma IG, quiçá o que eles venham a encontrar em um produto acreditado como IG.

Em suma, os temas acima abordados tratam de diversos aspectos que resultam, de maneira direta ou direta, da compreensão exata da natureza jurídica de uma IG. E a falta de definição, conforme se abordou, traz conseqüências diretas para este instituto. Com esta motivação é que se pretendeu abordar o presente tema, para que, quando a sociedade requerer fundamentos para a utilização do instituto das IG – como já vem requerendo, possa se dar respostas seguras e fundamentadas, garantindo o uso deste instituto, o direito do produtor, o direito do consumidor e a possibilidade do poder público regular sua utilização.

Kelly Lissandra Bruch é Doutoranda em Direito Privado - PPGD/UFRGS - Université Rennes 1, Consultora Jurídica do Instituto Brasileiro do Vinho – IBRAVIN, Professora Licenciada – Ulbra, pesquisadora bolsista CAPES-Colégio Doutoral Franco-Brasileiro.

Texto publicado (contendo alterações) em: Jornal A Vindima - O Jornal da Vitivinicultura Brasileira, Editora Século Novo Ltda. - Flores da Cunha - RS – Brasil, p. 21-23, agosto/setembro 2008.

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