Primeira Parte
Por Kelly Lissandra Bruch
Se alguém lhe propuser tomar um vinho do Vale dos Vinhedos, certamente lhe virá à mente aquela paisagem peculiar e especial que se encontra delineada na Serra Gaúcha. Se o convite for para beber um Champagne, imediatamente lhe surgirá a imagem dos vinhedos franceses. Estes dois predicados são indicativos de uma procedência peculiar, ou seja, são lugares aos quais se atribui o reconhecimento da origem, que indica uma reputação, qualidade ou outra característica que imediatamente leve o interlocutor a associar o produto ao local de sua procedência.
No Brasil, atualmente atribui-se a esta relação o nome de Indicação Geográfica – ou simplesmente IG. O surgimento das IGs caminha juntamente com a história da humanidade, que, por muito tempo, quando se referia a um produto, relacionava-o ao seu local de origem. Antes mesmo do uso de uma marca, a indicação de procedência de um produto agregava a este um significado especial. Já na Bíblia se encontram indicações de uma origem, como os vinhos de En-Gedi (Cânticos, I, 14) e o cedro do Líbano (Cânticos, III, 9, e Reis, V, 6).
Todavia, no mundo jurídico seu histórico é bastante recente. Sua previsão iniciou-se mediante a condenação do uso da falsa indicação de procedência de um produto. Posteriormente veio a se proteger a indicação geográfica como um direito positivo.
O primeiro tratado internacional a abordar o tema foi o Acordo de Madri de 1891, relativo à repressão das indicações de procedência falsas ou falaciosas das mercadorias, do qual o Brasil é signatário desde 1911. Posteriormente, a Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial (CUP), de 1883, traz, em uma de suas revisões posteriores, a mesma repressão às falsas indicações geográficas.
No Brasil, a repressão às falsas indicações de procedência aparece pela primeira vez por meio do Decreto 3.346, de 1887. Outras leis brasileiras trataram da repressão às falsas indicações geográficas, como é o caso da Lei 1.236/1904, o Decreto-Lei n. 7.903/1945 e, finalmente, a Lei 9.279/1996.
Este último documento é elaborado e publicado como forma de cumprimento de um dos acordos internacionais que o Brasil assumiu no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC): o Acordo sobre os Aspectos de Direito de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (TRIPs, em inglês). Segundo a seção 3 da Parte II do TRIPs, “as Indicações Geográficas são indicações que identifiquem um produto como originário do território de um Membro, ou região ou localidade deste território, quando determinada qualidade, reputação ou outra característica do produto seja essencialmente atribuída à sua origem geográfica”.
Na harmonização da legislação interna com o TRIPS, a Lei 9.279/1996, em seu artigo 176 e seguintes, define que se constitui uma indicação geográfica a indicação de procedência e a denominação de origem. O artigo 177 define a indicação de procedência (IP) como o nome geográfico de país, cidade, região ou localidade de seu território, que se tenha tornado conhecido como centro de extração, produção ou fabricação de determinado produto ou de prestação de determinado serviço. Já o artigo 187 define a denominação de origem (DO) como o nome geográfico de país, cidade, região ou localidade de seu território, que designe produto ou serviço cujas qualidades ou características se devam exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluídos fatores naturais e humanos.
Desta forma, verifica-se que o legislador brasileiro, ao regular internamente a definição de indicação geográfica constante do acordo internacional, não o fez de forma literal. Por um lado, restringiu-o em determinados aspectos, como no caso do uso de um nome geográfico, tendo em vista que o TRIPs permite o uso de qualquer nome, desde que este lembre uma localização geográfica. Por outro lado, ele expandiu-o, como no caso da extensão da proteção de produtos também para os serviços.
Passando à análise de como a Lei 9.279/1996 regula as IGs no Brasil, verifica-se que, tanto para a IP quanto para a DO, esta determina que, além da proteção do nome, a proteção se estenda à representação gráfica ou figurativa que esta utilizar, bem como à representação geográfica do local que leve o nome da IG.
Todavia, ressalta a referida lei, em seu artigo 180, que se um nome geográfico houver se tornado de uso comum, designando ele mesmo o produto ou serviço, não poderá mais ser reconhecido como uma indicação geográfica. A exemplo disso se tem o conhaque, o qual é reconhecido como tipo de produto consistente em um destilado alcoólico, sem que o consumidor necessariamente o ligue a sua origem geográfica, que é a região de Cognac, na França.
A lei também permite, em seu artigo 181, que um nome geográfico que não constitua uma indicação geográfica possa servir como elemento característico de uma marca, desde que desta forma não induza à falsa procedência. Seria a situação, por exemplo, da marca Casas Bahia, que, embora contenha o nome de um Estado, não induz o consumidor a compreender que todos os produtos por esta vendidos são provenientes da Bahia. Mas o artigo 124 da mesma lei, em seu inciso IX (nove), deixa claro que não se poderá registrar como marca uma indicação geográfica, nem a sua imitação que seja suscetível de causar confusão. No inciso X (dez) do mesmo artigo, acrescenta-se a impossibilidade de registrar marca que induza à falsa indicação quanto à origem, procedência, natureza, qualidade ou utilidade do produto ou serviço a que esta se destina.
De outra forma, o uso da indicação geográfica é restrito aos produtores e prestadores de serviço estabelecidos no local, conforme estabelece o artigo 182 da referida lei. Todavia, quando se tratar de DO, exige-se também o atendimento de determinados requisitos de qualidade que são inerentes aos produtos provenientes destas regiões.
Por fim, a lei determina que será o INPI que estabelecerá as condições para o devido registro das Indicações Geográficas, o que este fez por meio da edição da Resolução n. 75/2000.
Para coibir o uso inadequado de uma indicação geográfica ou de uma determinada origem, a Lei 9.279/1996, em seus artigos 192 a 194, pune três tipos de ações com penas de um a três meses ou multa – o que, diga-se de passagem, é uma pena irrisória. As ações punidas são associadas em três blocos:
a) Fabricar, importar, exportar, vender, expor ou oferecer à venda ou ter em estoque produto que apresente falsa indicação geográfica;
b) Usar, em produto, recipiente, invólucro, cinta, rótulo, fatura, circular, cartaz ou em outro meio de divulgação ou propaganda, termos retificativos, tais como "tipo", "espécie", "gênero", "sistema", "semelhante", "sucedâneo", "idêntico" ou equivalente, não ressalvando a verdadeira procedência do produto;
c) Usar marca, nome comercial, título de estabelecimento, insígnia, expressão ou sinal de propaganda ou qualquer outra forma que indique procedência que não a verdadeira, ou vender ou expor à venda produto com esses sinais.
Hoje, o Brasil tem 7 indicações geográficas reconhecidas pelo INPI, sendo 4 brasileiras. Há 3 pedidos em análise e 3 pedidos publicados. Além disso, 5 pedido foram indeferidos e 8 foram arquivados, conforme dados do INPI.
Finda a explanação jurídica, questiona-se: qual o objetivo de uma indicação geográfica? A finalidade de uma indicação geográfica é a proteção de produtos (ou serviços) que sejam provenientes de uma determinada região e que, por absorverem peculiaridades, sejam estas referentes a fatores naturais (como solo, clima ou relevo) e/ou a fatores humanos (tais como o saber fazer, a tradição ou a cultura de uma determinada comunidade), os quais tornam estes produtos diferenciados, únicos. Em contrapartida, também se busca a proteção ao consumidor, ao se procurar assegurar a este uma informação correta sobre o produto que está usufruindo, garantindo-se desta forma a procedência e a genuinidade deste bem.
Especificamente do ponto de vista do produtor, busca-se essencialmente dois objetivos. O primeiro, mais imediato, seria um acréscimo no preço do bem a ser comercializado, tendo em vista a agregação de valor relacionado ao reconhecimento de sua origem geográfica. Mas o objetivo mediato, que no ponto de vista da autora é o mais relevante, é a concretização do reconhecimento de um lugar como originário de um determinado produto, que se encontra impregnado da história daquela região e do povo que a habita, da sua cultura, reputação e constância. Este reconhecimento não garante apenas o mercado para o produto, mas a permanência daquelas pessoas no lugar, cultivando hábitos passados de pai para filho, e garantindo o desenvolvimento sustentável daquelas comunidades, que muitas vezes poderiam vir a se esvaziar com a ida dos filhos para a cidade e a perda completa da memória cultivada ao longo de gerações.
Mais que um instituto jurídico ou um objeto de marketing, é a Indicação Geográfica uma possibilidade de se garantir a sustentabilidade de uma determinada região, sem que isso implique sua transformação em um pólo industrial ou uma região de monocultura.
Kelly Lissandra Bruch é Doutoranda em Direito Privado - PPGD/UFRGS - Université Rennes 1, Consultora Jurídica do Instituto Brasileiro do Vinho – IBRAVIN, Professora Licenciada – Ulbra, pesquisadora bolsista CAPES-Colégio Doutoral Franco-Brasileiro.
Texto publicado (contendo atualizações) em: Jornal A Vindima - O Jornal da Vitivinicultura Brasileira
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