luni, iunie 20, 2005

Memória Acadêmica - RDAAA, n. 1, 2005 (Nota de Apresentação)

Nota de Apresentação

Depois de muitas horas de convívio e diálogo com o estudo que se segue, a impressão que o mesmo nos deixou marcada impôs a redação de algumas linhas. Não se trata de escrever uma nova recensão, alternativa ou complementar à de Antonio Carrozza, mas apenas de expressar um estado de alma, porventura apenas alcançável por quem partilha as raízes culturais do autor.
Este é muito claramente um texto crepuscular. Não tanto pelo estilo da escrita, vivo, informado e inclusive ansioso de transmitir toda a informação dispersa que recolhera e sistematizara de acordo com critérios muito ligados à efetividade econômica e social do tempo, até antecipando esforçadamente uma orientação metodológica crucial para a autonomização e consolidação dogmática do Direito Agrário no Século XX.
Sem que o autor disso se dê conta, o mundo sobre o qual escreve está em vias de terminar. Recordemos que em 1815, no momento em que a obra é publicada em Lisboa pela Impressão Régia, a Corte portuguesa estava sediada no Rio de Janeiro para onde embarcara em 7 de novembro de 1807 por forma a escapar aos Exércitos de Napoleão, no caso comandados pelo General Junot. O Governo do Reino era assegurado pelo Príncipe Regente D. João, ao estar demente sua Mãe, a Rainha D. Maria. E, em 16 de dezembro desse mesmo ano de 1815, o Brasil deixa de ser uma colônia com a instituição do então denominado Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Só assim se compreende o esboço traçado de um espaço econômico e jurídico que abrange indistintamente os territórios e cidades de Portugal, do Brasil e da África, ainda que esta de uma forma quase residual. Aliás, o estudo mais específico dos fluxos de mercadorias entre estas terras que bordejam o Atlântico é feito pelo autor num outra obra sua, as Primeiras linhas do direito commercial deste reino, publicadas em Lisboa também em 1815, e reeditadas no Rio de Janeiro logo no ano seguinte. É este um mundo que se irá desmoronar com o Pronunciamento havido no Porto em 24 de agosto de 1820, a que se seguiu o regresso a Portugal do, entretanto aclamado, Rei D. João VI em 26 de abril do ano sucessivo, culminando na Proclamação da Independência do Brasil em 7 de setembro de 1822, pelo Infante D. Pedro.
Numa outra perspectiva, não totalmente desligada da primeira, os Ordenamentos de Portugal e do Brasil estavam em vias de serem varridos pelas idéias liberais. Para estas, as regras que se tinham vindo a decantar ao longo dos séculos, estabelecendo uma intrincada rede de vínculos sob a responsabilidade última do Soberano pelo bem-estar e a felicidade de todos teriam de ser substituídas por outras mais simples, apenas dependentes da razão e orientadas a proporcionar a cada um uma felicidade sua, fundada no respeito por uma propriedade sacralizada. Conseqüentemente, foram vergadas as resistências das populações não representadas nos Parlamentos de composição censitária, os laços e os nós foram sendo desfeitos e até mesmo cortados. Terminado o caminho, do Direito Agrário nada mais restaria, tudo constituindo Direito Civil. Apenas já bem entrado o Século XX, obras como a de Porfirio Hemeterio Homem de Carvalho recobraram a atualidade. Neste tempo no qual os simplificadores parece haverem tornado a impor a lei, é pois imperioso reler as Primeiras linhas de direito agrario... e refletir como tudo poderia haver sido sem interferências exteriores.
Lucas Abreu Barroso /Manuel David Masseno