miercuri, iulie 06, 2005

Tributação automóvel, consignação de receitas fiscais e afins: algumas reflexões

Claudia Dias Soares
Extracto de artigo a publicar na Revista Fisco, Ns. 117/118, 2005

Parece-nos que os desenvolvimentos que se antecipam a nível da tributação automóvel tenderão a emergir mais como resultado da pressão realizada pelas instituições comunitárias do que de uma intervenção nacional isolada dirigida a esse fim. O esforço de harmonização da tributação automóvel na União Europeia poderá em breve vir a traduzir-se em resultados positivos, porquanto, desde os últimos meses de 2004 vários factores têm vindo a convergir e a pressionar para que se avance nesse sentido. Uma decisão nesta matéria estava já prevista para 2004. Por um lado, parece existir neste momento uma forte vontade política nesse sentido. Os governos nacionais estão cada vez mais impacientes pela adopção a nível comunitário de medidas que restrinjam as emissões de dióxido de carbono pelos veículos automóveis, como emergiu do último Conselho de Ministros do Ambiente, realizado a 14 de Outubro de 2004. O que mostra alguma desconfiança em relação à estratégia seguida até agora, que se tinha baseado essencialmente na realização de acordos voluntários com a indústria automóvel. Segundo os acordos celebrados, em 1998, entre a Comunidade e os construtores europeus, japoneses e coreanos, a frota automóvel deve estar apta a reduzir as emissões para 140 gramas por quilómetro (g/km) até 2008/9.
Vários factores se conjugam actualmente para esta tomada de posição dos ministros do ambiente dos Estados-membros, já que a vontade política da Comissão Europeia vem de longe. Note-se que em 2002 foi publicado um estudo (Relatório Cowi) que fornecia informação técnica para se proceder à harmonização da tributação automóvel a nível comunitário, que deu origem à comunicação da Comissão nesta matéria (COM(2002) 431), e, desde o início dos anos noventa, desenvolveram-se esforços significativos a nível nacional nesse mesmo sentido [1]. Pelo receio da perda de receita no curto prazo e pela falta de um consenso entre os interessados, nunca se conseguiu, no entanto, avançar para uma efectiva reforma [2]. Um outro aspecto que tem influenciado (ou mesmo determinado) o processo traduz-se no facto de os entraves colocados ao funcionamento do mercado comum pelas diferenças observadas entre os regimes fiscais dos diversos Estados-Membros continuarem a pressionar no sentido da adopção de uma abordagem fiscal harmonizada.
A situação agudiza-se neste momento porque, por um lado, a indústria automóvel tem evitado comprometer-se com os objectivos políticos mais exigentes que a União Europeia pretende implementar, uma média de 120 g/km até 2012, afirmando que tal envolve custos demasiado elevados. Fala-se de cerca de 50 biliões de euros, isto é, cerca de 900 euros por cada tonelada de CO2 eliminada, o que é um valor muito superior ao observado na maior parte dos outros sectores. As negociações não avançam desde Dezembro de 2003 e os resultados obtidos até agora são insignificantes. O nível médio de emissões gerado pelos novos modelos vendidos na UE em 2002 foi de 166 gramas por quilómetros. O que representa apenas 1 grama menos do que o valor observado em 2001. O progresso mais insignificante desde 1995, ano de referência dos acordos, em que o nível médio de emissões foi de 186 g/km.
E, por outro lado, com a aprovação da maior parte dos planos nacionais de licenças de emissão já feita, incluindo o português, há a consciência de que, sem se intervir no sector dos transportes, já um dos maiores responsáveis pelos gases com efeito de estufa (GEE) e com níveis crescentes de emissões, dificilmente se conseguirá cumprir quer os objectivos assumidos através do Protocolo de Kyoto, quer os definidos internamente no Conselho de Ministros do Ambiente de Junho de 1998, isto é, não aumentar as emissões de GEE em mais de 17 por cento até 2008/2012 tomando como referência o nível de 1990.
Como afirmou o ministro holandês no Luxemburgo após o Conselho de 14.10.2004, Pieter van Geel, “muitos ministros consideram que uma abordagem voluntária já não é suficiente e que será de considerar medidas de natureza financeira e fiscal para atingir o nosso objectivo". Numa declaração escrita, a então Presidência da UE, que está entre os países líderes no uso do sistema fiscal para fins ambientais, referiu que a Comissão devia estar preparada para legislar sobre esta matéria se a indústria automóvel continuar renitente em se comprometer com objectivos mais ambiciosos. Lembre-se que já em Dezembro de 2003, o ministro alemão, Jürgen Trittin, pedia medidas de natureza legislativa. Embora nessa altura ainda não contasse com o apoio expresso dos demais Estados-Membros.
Embora se admita que a subida de 2 por cento do Imposto Automóvel e do Imposto sobre Produtos Petrolíferos em 2005, tal como já havia acontecido em 2004, mantendo-se a dupla tributação através do IVA, era ‘inevitável’, porque o Estado precisa de todas as fontes de receita que consiga obter e obviamente prefere usar impostos aos quais estão associados menores custos de cobrança como são o Imposto Automóvel e o Imposto sobre Produtos Petrolíferos, devem-se colocar aqui algumas questões, nomeadamente a nível do efeito ambiental obtido, que parece não existir. Por falta de alternativas (i.e., bons sistemas de transportes públicos) e por preconceitos bem enraizados na mentalidade dos países do sul da Europa, a elasticidade da procura de transportes particulares é muito reduzida. A distorção contra o ambiente que o IA envolve só se agrava com o seu aumento sem uma simultânea reforma dos respectivos critérios de tributação. Além de que há que considerar se não se ultrapassou já o ponto óptimo na curva das receitas deste imposto, isto é, aquela taxa que permite obter o máximo de receitas. Porquanto, segundo os dados disponíveis até 2000, o valor das receitas efectivas tinha atingido o seu máximo em 1992 [3]. Com a continuação desta estratégia de aumento das taxas sem mexer nos critérios de tributação podemos, assim, estar a reduzir a capacidade recaudatória do imposto.
Seria possível introduzir variáveis de carácter ambiental no cálculo do Imposto Automóvel, tal como a Comissão Europeia vem propondo. Alguns dos critérios possíveis passam por adoptar como critérios de tributação, para além do peso do veículo, outras características que afectam a sua capacidade de gerar emissões, como sejam o tipo e quantidade de combustível utilizado, a idade do veículo, o equipamento acessório (por exemplo, sistema de refrigeração e de aquecimento de assentos), que, mesmo num carro novo, pode aumentar as emissões de dióxido de carbono em cerca de 16 a 28 gramas por quilómetro. No caso dos veículos a diesel, um importante critério deve ser a instalação de filtros de partículas, porque se é verdade que estes veículos emitem menos gases com efeito de estufa, não se pode esquecer que emitem muito mais partículas poluentes, que são um problema grave nos perímetros urbanos.
Podia-se, ainda, utilizar a informação que se obtém através da submissão do veículo a testes que determinam o montante de partículas e de emissões de sulfúreo e nitratos para definir escalões de imposto. Embora relativamente a este aspecto ainda exista algum atraso técnico e a Agência Europeia de Ambiente (TERM 2004) não considere os resultados destes testes absolutamente fidedignos, porque em condições reais os veículos tendem a apresentar performances diferentes, tais resultados poderiam ser utilizados como valores indicativos para a delimitação dos escalões. Foi também discutido no Conselho de Ministros do Ambiente, de 14.10.2004, a necessidade de estabelecer limites mais rigorosos para as emissões de NOx nos veículos ligeiros. Os valores que estão a ser discutidos podem servir de referência para a definição de escalões de tributação no IA.
No IA existe agora uma imensidade de regimes mais favoráveis, muitos dos quais têm uma justificação duvidosa. A eliminação de parte destas fontes de despesa fiscal poderia ajudar a fornecer as receitas necessárias para se tratar de forma mais favorável os veículos menos poluentes. Por outro lado, tendo em conta o debate sobre a reforma dos Regulamentos (CE) ns. 1466/97 e 1467/97, talvez seja possível vir a contornar os riscos para a violação do Pacto de Estabilidade e Crescimento associados à perda de receitas fiscais que se teme que ocorra no curto prazo caso se opte pela deslocação da carga fiscal automóvel do momento da aquisição para o da utilização do veículo, como pretende a Comissão Europeia. A via a seguir para o efeito poderia então ser a da contextualização de uma tal alteração legislativa no âmbito de uma reforma estrutural essencial, como é a da funcionalização das finanças públicas à prossecução de um desenvolvimento sustentável [4].
Independentemente do perigo que se acabou de referir, parece que a abordagem a seguir tem necessariamente que ser uma abordagem integrada. O que causa poluição não é a aquisição do veículo mas o seu uso. Se bem que seja necessário intervir fiscalmente no momento da aquisição, para orientar a compra para os modelos mais eficientes em termos energéticos e menos poluentes, o fulcro da acção terá que ser ao longo da vida do veículo, isto é, cobrar pelo uso das estradas e internalizar as externalidades associadas ao uso do veículo. E é esta a orientação dada pela Comissão para a reforma da tributação do sector automóvel.
No caso português esta dimensão da reforma acarreta ainda um outro problema. Talvez não seja apenas uma questão de perda de receitas o que tem adiado a reforma do IA. A incapacidade de estabelecer uma solução consensual entre os sujeitos parece desempenhar também um elemento importante no debate. Existe aqui um problema de perda de poder. A passagem da parte substancial da carga tributária que incide sobre o sector dos transportes do momento da aquisição, como se verifica actualmente em Portugal, para o momento da utilização, implica uma importante redução do imposto sobre a aquisição e um aumento do imposto de circulação. Este imposto é hoje representado entre nós pelo Imposto Municipal sobre Veículos, estabelecido em valores simbólicos e fonte de receita das finanças locais. Pelo que será importante ligar a reforma da tributação automóvel à reforma do sistema de financiamento local.
Uma possibilidade de compromisso poderia, no entanto, passar por uma solução semelhante à que se adoptou em sede de Imposto sobre Produtos Petrolíferos, isto é, manter o sistema fiscal existente e acrescentar-lhe uma sobretaxa que incidisse sobre os modelos mais poluentes. Mas embora esta tenha sido a solução preferida pelo Ministério das Finanças aquando da última tentativa de reforma do IA levada a cabo pelo anterior executivo socialista, parece difícil que se venha a conseguir a sua adopção. Porquanto, uma tal via não agrada ao sector do comércio automóvel, na medida em que esta solução mantém a aquisição de veículos usados, nomeadamente de veículos importados, mais atractiva face à aquisição de veículos novos.
A reforma da tributação do sector dos transportes particulares no sentido que é apontado pela Comissão passa entre nós por actuar a três níveis. Em primeiro lugar, é importante proceder à reforma da tributação que grava a aquisição automóvel. O que talvez represente a necessidade de intervenção mais urgente no caso português. Em segundo lugar, mostra-se necessário introduzir cada vez mais o princípio do utilizador-pagador nas estradas e nos espaços urbanos, nomeadamente ao nível do acesso e do estacionamento. E, terceiro, é necessário intervir na tributação energética e internalizar no preço dos combustíveis os custos ambientais e de congestão urbana. O que carece de se averiguar no caso português se está a acontecer, porque apesar do elevado nível de tributação dos combustíveis e da transposição da Directiva sobre a harmonização da tributação dos produtos energéticos (Directiva n. 2003/96/CE, 27.10.2003) através do Adicional ao ISP, não existe qualquer estudo que demonstre que os valores cobrados por cada litro de combustível correspondem aos custos externos gerados pelo mesmo. Mais do que o rigor de valores absolutos, o que está aqui em causa é o fornecimento ao mercado de sinais através do preço que orientem a escolha relativa entre os produtos. É importante, por exemplo, que se estimule o uso de biocombustíveis. Na Lei de Orçamento do Estado para 2005, o Governo propõe que lhe seja concedida uma autorização legislativa para isentar do Imposto sobre Produtos Petrolíferos os biocombustíveis incorporados no gasóleo e na gasolina [5], mas não se encontra no nosso sistema fiscal qualquer outra medida de apoio directo à exploração da energia obtida a partir de biomassa, nem mesmo no ISP, onde tal se justificaria face aos benefícios fiscais concedidos a produtos energéticos substitutos mais poluentes.
Sem pretensões a cobrar através do imposto um valor exacto por cada unidade de emissões poluentes associada ao litro de combustível, pelas dificuldades técnicas e administrativas que tal envolve, é perfeitamente possível fazer reflectir no preço de cada espécie de produto energético de forma mais rigorosa a sua capacidade poluente, à semelhança do que se observa, por exemplo, na Suécia, introduzindo um imposto com duas componentes: uma que grava a componente energética do produto e outra que grava a componente poluente do produto. Além do aspecto ambiental, esta medida teria ainda uma outra vantagem. Neste momento estamos a aproveitar do benefício fiscal que a Directiva 2003/96/CE nos permitiu relativamente à electricidade, ao gás natural e ao gasóleo usado como combustível. A introdução de um tal imposto deixaria o caminho preparado para quando, a partir de 2009, passarmos a estar sujeitos ao regime geral fazermos a sua aplicação sem necessidade de grandes reformas em termos de tributação energética.
Assim, e, tal como se previa, a Comissão Europeia propôs em 05.07.2005 a eliminação gradual do imposto automóvel, no quadro de uma iniciativa que visa, a prazo, tributar os veículos ao longo da vida e em função das emissões de dióxido de carbono. A proposta sugere que os Estados membros devem transferir a carga fiscal do ‘registo’ automóvel (o Imposto Automóvel, em Portugal) para o imposto sobre a circulação (o Imposto Municipal sobre Veículos, o chamado ‘selo’ automóvel) ou, em alternativa, para os impostos sobre os produtos petrolíferos (ISP). O objectivo último de Bruxelas é criar no prazo de dez anos uma tributação harmonizada do parque automóvel baseado numa política ambiental. Essa tributação estará assente no imposto sobre circulação que deverá ter como base crescente a emissão de CO2. A importância do factor-poluição neste imposto deve atingir 25% em 2008 e 50% em 2010.

Segundo o comissário húngaro com a tutela dos assuntos fiscais, esta proposta “vai beneficiar o mercado interno, a competitividade da indústria automóvel, o ambiente e consumidor”. Além disso, “também elimina o espectro de dupla tributação que é contra o espírito do mercado interno e dá confiança aos consumidores sobre qual é o quadro legal em aplicação”. Este é o objectivo imediato porque actualmente os proprietários podem ser obrigados a pagar imposto para registar o seu automóvel num Estado-membro, apesar de já o ter feito uma vez no seu anterior país de residência.
Além de Portugal, há 15 Estados-membros, entre os 25, que têm um imposto de registo automóvel onde esta dupla tributação se verifica. Além disso, as taxas variam muito entre os Estados e podem atingir valores exorbitantes, como é o caso da Dinamarca onde o imposto é de 16 mil euros. A título de exemplo, refira-se que os impostos sobre o registo dos automóveis existentes nos Estados membros da União Europeia e a carga fiscal, para um veículo de 2000 c.c., pode ir de 1%, na Itália, até 173% na Dinamarca, enquanto em Portugal é de 50%.
O diploma irá ser apreciado em breve pelo Conselho europeu e pelo Parlamento devendo entrar em vigor não antes de 2008. Esta iniciativa da CE deve ser lida também à luz do compromisso assumido pelos fabricantes automóveis para reduzir emissões de CO2 para uma média de 140 gramas por quilómetro em 2008 e 120 g/qm em 2012. (...)

[1] V.g., Projecto de Lei apresentado pelo grupo parlamentar do Partido Socialista, Projecto n. 452/VI, Diário da República, II Série-A, 05.11.1994, pp. 32-33, p. 32, MINISTÉRIO DAS FINANÇAS e SECRETARIA DE ESTADO DOS ASSUNTOS FISCAIS, 2002, Reformas da Tributação Automóvel e do Património, Coimbra: Almedina, pp. 40-42, GEOTA, 1998, Comunicado de Imprensa relativo ao Imposto Automóvel, Janeiro, GRUPO PARLAMENTAR DO BLOCO DE ESQUERDA, 2000, “Um contrato social e ecológico para o país”, Novembro, p. 3.
[2] CLAUDIA DIAS SOARES, 2004, The use of tax instruments to deal with air pollution in Portugal. Ecological modernisation and the use of NEPIs, RevCEDOUA, Ano VI, N. 11, pp. 45 e ss.
[3] SÉRGIO VASQUES, 2002, A Reforma da Tributação Automóvel, Fiscalidade, N. 10, Abril, pp. 59 e ss.
[4] BEETSMA e DEBRUN, 2004, Reconciling Stability and Growth: Smart Pacts and Structural Reforms, IMF Staff Papers, International Monetary Fund, Vol. 51, N. 3, pp. 431-456, p. 431, analisaram a relação de troca entre a estabilização de curto prazo e o crescimento de longo prazo e, na área euro e no contexto do Pacto de Estabilidade e Crescimento, concluíram que, por vezes, as regras fiscais podem carecer de ser relaxadas por países que estão a iniciar um processo de adopção activa de reformas estruturais essenciais. EDUARDO LEY, 2004, Fiscal Rules, IMF Research Bulletin, Vol. 5, N. 3, Washington, pp. 1-2. E este aspecto foi debatido em sede do processo de revisão do Pacto de Estabilidade e Crescimento.
[5] Cf. art. 34º/7, alínea b), da Lei n. 55-B/2004, 30.12.2004.

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